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sábado, 24 de julho de 2010

Livro de Poesias "Alegre Vômito", de Raul Machado


-Já está a venda o primeiro livro de poesias do nosso integrante arteiro!

-Para maiores informações, ou para adquiri-lo, entre no site da editora: www.editorazouk.com.br

-Ou diretamente pelo email do Arterizar: coletivoarterizar@yahoo.com.br

-Em breve informações sobre o lançamento.

Abraços!

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Arterizando / Divulgações

*Conto, de Raul Machado

O Culpado


Um relógio manchado de sangue apita no ouvido. Desperta perto demais de mim. O sangue me lembra a cena, me lembra o que fiz ontem à noite. Não consigo voltar a dormir. Está tudo perto demais de mim.

Levanto-me em direção ao banheiro. Preciso descarregar algo. Talvez eu consiga cagar minha alma.

Não vejo nada. Meu banheiro escurece. Antes de chegar, caio no chão e desapareço de minha casa. Não há mais nada perto de mim. Desespero.

Creio estar sonhando. O sangue escorre nos meus olhos, o sangue não é meu. Busco caminhar entre uma névoa forte, tateando paredes de pedra, brinquedos de crianças, sapatos furados e placas sem indicação. A neblina me faz lembrar a serra onde conheci uma menina. Não sei onde estou. Faz frio, mas estou nu.

Não vejo minhas mãos, não vejo meu corpo. Branco como nuvem, misturo-me ao cenário. Sou aquela placa, aquela parede, aquele sapato. Não sou nada. O sangue que antes me pesava a pálpebra agora aparece jorrando, diante de mim, em bonita fonte que parece estar no centro de alguma praça. Uma moça nua de costas admira a cena. Tento alcançá-la.

Acordo. Vejo a lâmpada da minha sala de casa. Ao meu lado o banheiro. O coração faz baterias de carnaval em meu peito. Preciso levantar. Limpar o sangue. Limpar a consciência já não é mais possível.

Não consigo. Os sonhos me invadem a realidade. Não consigo dormir. Não consigo acordar. Não há luta. Há apropriação. Pesadelos. Não consigo mais. Fecho os olhos. E o sangue? E meu passado? Preciso fugir.

Não consigo. Os sonhos me abraçam, me jogam no chão, me chutam a cara, me afundam na memória. A faca, a pele se abrindo, os gritos. As cenas surgem como fotografias na minha mente. Não há saída por aqui.

Preso em mim mesmo, ouço as batidas na porta. É a polícia, só pode ser. Tento gritar. A nuvem escura me cala. Relaxo os músculos, admito. Perdi. Minhas pernas não são nada mais do que frágeis plantas secas e desengonçadas. Derrota.

Aqui de dentro vejo me carregarem. Meu corpo sujo na prisão, no hospício, pessoas falando comigo, amigos chorando. Meu rosto não mexe. Sou jogado em pequena sala. Há câmeras. Elas não podem ver nada. Deito novamente na minha cama e ao meu lado a culpa sorri fedorenta. Deixo o relógio apitar, não há sangue nele, nem horas, nem medo. Sonho, pois aqui não há testemunhas. Nunca mais haverá.

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*Poesias, de Raul Machado

A CASA DA MENINA

Na madeira
Tuas madeixas
Cheias de maneiras

No quarto
Sem cadeiras
Nem um quarto de cheiro
De terceiros

Entre criado-mudos
Ao lado da cama que geme
Caminho lentamente
Na tua casa que pende

E torto como ando
Não vejo teu horizonte
Somente pontes que atravessam
Os restos de roupas
Que deixei cair tropeçando


RESSACA II

Mas sempre acorda o outro dia
Que insiste
E nunca admite
Ser o dia seguinte

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*Divulgações

- II Floripa Blues Festival - 21/07 - Quarta

Um noite especial dedicada ao blues com participações especiais de Fernando Noronha, Marcelo D'Ávila, Armando Felipe da Silva e Rick Boy Slim que apresentam canções no ritmo do blues.
Local: Teatro Álvaro de Carvalho - Rua Marechal Guilherme, 26 - Centro.
Horário: 21h.
Ingresso: R$ 20 e R$ 10 meia-entrada.
Ponto de Venda: no local.
Informações: (48) 3028-8070


-28 Festival de Dança de Joinville

Estilos variados de dança, mostras competitiva, contemporanêa e infantil, oficinas, cursos, apresentações gratuitas, etc. O maior festival de dança da América Latina.
Quando: 21/07 a 31/07
Local: variados
*Mais informações e programação completa aqui: www.festivaldedanca.com.br


-Show de Jorge Drexler em Floripa

Quando: 27/07, às 21h.
Local: Teatro Pedro Ivo
Ingressos: bilheteria do CIC, TAC, Pedro Ivo, Loja Colombo Iguatemi e www.blueticket.com.br

quarta-feira, 14 de julho de 2010

A Fábula da Carta

*Ilustração de Fernando Bijos e texto de Raul Machado

Era noite e fazia frio. O vento fazia ranger a pequena casa de madeira solitária no meio da floresta. O ano era 1485, em alguma região desconhecida do mapa. O povoado mais próximo da casa ficava a 8 quilômetros, e o único meio de se chegar lá era caminhando ou no lombo de um cavalo.
Na pequena casa perdida morava um misterioso homem, com sua misteriosa mulher, e mais alguns ratos. Um pequeno lampião iluminava a mesa de madeira no centro da sala, onde repousavam as garrafas de vinho e os queijos produzidos pelos dois, quando naquela sombria noite os tambores das patas dos cavaleiros da morte se fizeram ouvir por toda a região.
O pobre homem não viu quando os cavaleiros invadiram sua casa, estilhaçando janelas e zumbindo como demônios, tomaram seu vinho, comeram seu queijo e de facas em punho marcaram os olhos de sua mulher com um X, o sinal da doença. Tão ligeiros como eles chegaram, eles se foram, sumindo na escuridão.
Ajoelhando perante o Livro da Magia, o homem chorou e rezou por sua mulher. De nada adiantou. Em uma semana ela estava cega, na segunda semana já estava paranóica e a loucura cada vez mais lhe comia o cérebro. Na terceira semana morreu ao enfiar uma pena, embriagada no nanquim, em seu peito. Na sua boca a carta de despedida amassada entre os lábios agora gelados. O homem leu, e sabia o que tinha de ser feito.
Na manhã seguinte ele caminhou sozinho até o povoado. Carregava nos braços o Livro da Magia, a carta de sua mulher morta, uma pena, um vidro de nanquim e um baralho de cartas. Foi ao encontro de Madame Cabeça-de-Lua, especialista em química e jurada de morte pelo Reinado por prática de bruxaria, que ninguém jamais vira a face, sempre coberta por uma máscara de madeira. Dizem que é impossível retirar a sua máscara e o único que conseguiu tal façanha viu seu próprio corpo transformar-se inteiro em pedra e ser lançado aos céus para lá viver eternamente sozinho: a Lua.
O homem conseguiu encontrar a Madame em uma pequena caverna próxima ao mercado. Contou-lhe sua história e recebeu a simpatia dela. Ela haveria de criar um baralho de cartas inteiramente novo, com a pena e o nanquim usados pela mulher do homem, personificando a morta na Rainha, e o homem no Rei. Esta era a única maneira dele fugir dos cavaleiros da morte e reencontrar a sua amada. Mas para isto, o homem teria que renunciar à sua própria vida. E assim o fez, com a mesma pena e o mesmo nanquim que sua mulher.
As lendas contam que o baralho ficou pronto no verão de 1490. O homem e a mulher, Rei e Rainha, estavam juntos novamente. Madame Cabeça-de-Lua deu-lhe os nomes: Nanqueen e Nanking. O baralho nunca foi usado e nem visto, até a morte de Madame, queimada viva em sua caverna.
Dizem que o fogo queimou tudo que havia ali dentro, menos duas coisas: duas cartas. Nanking, encontrada e capturada, e Nanqueen, vista voando entre as cinzas e a fumaça, como em um vôo cego, sem jamais ter sido encontrada novamente. O padre, fascinado com o fato de Nanking ter resistido, a guardou em um cofre no subterrâneo da igreja. Ele temia que a carta estivesse possuída por poderes diabólicos, mas cogitou que ela escondesse também algum segredo de vida eterna, por ter resistido.
Durante uma madrugada o padre estava dormindo em seu pequeno quarto na igreja, quando gritos desesperados lhe invadiram os ouvidos. Assustado, levantou-se e correu para o salão principal. Os gemidos, viscerais e agudos, lhe arrepiaram a espinha. Não havia mais ninguém com ele ali, e os gritos não paravam. Cada vez mais altos, mais profundos, os gritos tornaram-se sons guturais, e mais pareciam o vomitar de um espírito de profundezas obscuras jamais vistas. O padre, em posição fetal frente à cruz de Jesus, chorava e pedia clemência. As suas calçolas já estavam borradas de medo.
Em meio aos vômitos infernais e ao seu próprio choro angustiado, o padre conseguiu ouvir o que mais temia: O grito clamava por Nanqueen. Era a carta, era Nanking, que pedia por sua amada. Neste momento, um rato entrou na igreja por uma fresta, e correu até os subterrâneos. O padre, desesperado, correu atrás. Lá embaixo, encontrou o seu cofre arrebentado sem a Nanking no seu interior. Os gritos pararam. O rato foge rapidamente. O padre, estarrecido, ficou parado sem saber o que fazer.
Sabe-se, hoje em dia, que este padre foi dado como louco na época e acusado de inventar toda esta história da Nanking. Em 1494 ele foi queimado vivo, acusado de demonismo. Acusação que ele negou veementemente até a última brasa queimar-lhe as entranhas.
Após este caso, Nanking não foi vista por séculos. Somente em 1912, há indícios que a carta tenha sido vista em regiões marginais de grandes cidades da Europa e da América. Há relatos dessa época da existência de uma carta que não consegue ser rasgada, amassada ou queimada, que ao ser guardada e escondida começava a gritar e assombrar a região, sempre chamando pela Nanqueen. Normalmente estes casos aconteceram juntamente com uma infestação de ratos na cidade, nunca claramente explicados pelas autoridades.
Em 1968 finalmente uma luz aparece neste misterioso caso. Em meio às revoltas em Paris, Nanking foi encontrada com um grupo organizado de militantes. Ao saber da existência desta carta, o governo tentou de todo jeito capturá-la, sem sucesso. Em 1970 ela é novamente encontrada, agora na Índia, nas mãos de um sábio. Ele contou que a carta era livre por natureza e jamais poderia ser dominada ou privada de sua missão: reencontrar Nanqueen. Contou também que lhe foi confiado uma informação, de que Nanking viu sua amada voando para as nuvens naquele dia em que o fogo tomou a caverna de Madame Cabeça-de-Lua. Por isso, necessitava da ajuda de sonhadores, loucos e livres, para que conseguisse chegar à altura de sua amada. Na época muitos desconfiaram do sábio hindu, duvidando que a carta tivesse lhe contado tudo aquilo.
Porém em 2009, Nanking é encontrada com Artério Arteiro, em suas nuvens coloridas. A busca continua, cada vez mais próxima, pela liberdade e pelo amor, nem que seja cego, nem que seja nuvem, nem que sejam ratos da noite.

“Diante deste espelho, já não suporto mais o meu reflexo. Só vejo solidão. Só vejo prisão. A minha necessária liberdade, o meu necessário amor, talvez só surja novamente através de riscos escuros e profundos de nanquim. Os mesmos riscos que um dia me aprisionaram” (Nanking).

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Leituras e Dicas de Pesquisa

*Coletivo Arterizar sugere alguns temas e leituras, para quem tem interesse nas artes e na cultura e para seus integrantes fixos ou não, para pesquisarem e conhecerem nestas férias de inverno:

-Manifesto Surrealista, de André Breton - 1924: http://www.marxists.org/portugues/breton/1924/mes/surrealista.htm

-A estrela da manhã - Surrealismo e marxismo, de Michael Löwy - 2002. Editora Civilização Brasileira/ Rio de Janeiro.

-Conhecer a obra de Mário Pedrosa, militante político e crítico de arte. Breve biografia: http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Pedrosa

-Conhecer o conceito de Arte Bruta e o artista/pesquisador que o "criou", Jean Dubuffet. É tida como a arte da loucura e da liberdade. Quem tiver interesse em se aprofundar no tema, dois "artistas brutos " brasileiros que vale conhecer: Arthur Bispo do Rosário e a catarinense Eli Heil.

-Conhecer mais sobre Hélio Oiticica, artista e "teórico das artes" contemporâneo brasileiro:

OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

BRAGA, Paula (Org.). Fios Soltos: A arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008.

Pesquisa Internet.


*Abraços, e boas leituras.

Divulgações

*III Mostra Luta!

A Mostra Luta! é uma mostra nacional de vídeos, fotografias, poemas e quadrinhos que exibe e debate as lutas travadas contra a exploração e a opressão capitalista. Organizada pelo Coletivo de Comunicadores Populares, a 3ª Mostra Luta! ocorrerá em Campinas, e de forma itinerante em outras cidades do Brasil, abrindo novamente espaço para a expressão de todas e todos que não têm acesso aos meios de difusão de suas lutas e ideais. A Mostra Luta! é mais um instrumento para romper o silêncio imposto pela grande mídia, concentrada nas mãos de uma minoria, e para difundir aquilo que não passa na TV, nos jornais, nas revistas: nossas lutas contra a exploração, a miséria, a concentração de renda e terra, contra todas as formas de opressão (machismo, racismo, homofobia, hierarquização geral, etc.), contra o monopólio dos meios de comunicação e a mercantilização da cultura e da arte, contra a progressiva perda de direitos e a criminalização dos que buscam lutar por esses direitos.

-Inscrições abertas de 17 de maio a 15 de julho.

-Para se inscrever acesse: http://mostraluta.org
Venha mostrar sua luta!

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*Programa de Capacitação em Projetos Culturais

O Ministério da Cultura abriu inscrições para o Curso Online de Gestão Cultural, restrito para catarinenses. O curso é gratuito.

O objetivo é capacitar de forma continuada agentes culturais dos setores público e privado.

Além disso, o curso visa contribuir para a melhoria dos resultados dos projetos culturais, por meio da formação de uma nova cultura gerencial comprometida com a transformação dos setores público e privado, responsável pela administração da área cultural.

**Em Florianópolis as inscrições estão abertas entre os dias 07/06 a 24/09 para o curso de nivelamento, pelo qual os inscritos serão avaliados em uma prova sobre a 1ª fase do projeto, que leva assinatura da FGV(Fundação Getúlio Vargas).

Objetivos complementares do curso:

-Capacitar artistas, gestores, empreendedores, administradores, técnicos e produtores culturais com experiência em distintas áreas, para atuarem na gestão de atividades culturais, nas esferas públicas e privadas.

-Proporcionar uma visão integrada das áreas de administração, economia, direito, marketing, artes e cultura.

-Preparar o profissional para elaborar e desenvolver as etapas necessárias ao domínio do negócio cultural.

-Proporcionar informações para o desenvolvimento de empreendimentos próprios com a utilização da metodologia adequada.

O Programa de Capacitação é uma iniciativa da Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura (MinC), em parceria com a Secretaria de Políticas Culturais do MinC, o Serviço Social da Indústria (SESI) e o Itaú Cultural (IC).

**Mais informações no site: http://www5.fgv.br/fgvonline/minc/index.asp?idc=00

quinta-feira, 1 de julho de 2010


*Desenho de Fernando Bijos.

O Vôo

*Conto de Raul Machado


Cinco e quinze da madrugada. O cheiro do dia parindo já começava a invadir seu pequeno apartamento. Janela aberta para que seu cubículo pareça maior, como se o mundo inteiro pudesse entrar por aquele buraco na parede, fazendo seu apartamento se transformar em apenas um pequeno sofá acolchoado no canto da sala do universo.
Resquícios de vinho tinto manchavam o bege das lajotas do piso. Vinho barato, reconhecível pela coloração, odor e dor de cabeça. Sinos tocavam em sua cabeça e despertadores assobiavam no seu ouvido, mesmo sem missa na igreja e sem pilha no relógio. Relógio que arduamente se segurava, torto, acima da entrada da cozinha.
Foi até seu quarto, estava vazio. Correu para o banheiro, também vazio, espiou atrás da geladeira e não viu ninguém, tentou ver dentro do armário, mas não viu nada, e até embaixo da escrivaninha foi procurar, porém não encontrou. Ficou com medo de olhar por debaixo das roupas que vestia. Medo de estar vazio também.
Fez dois copos de café e sentou-se sozinho na escrivaninha. Bebeu de um, o outro ofereceu a ninguém, aparentemente sentado do seu lado. Delirou fingindo conversar com Ninguém, debatendo sobre o mercado brasileiro de nozes ou falando animosidades sobre a vida sexual do cachorro do porteiro.
Os dois copos esvaziaram-se e começou a fazer cafuné em si mesmo. Excitava-lhe a sensação, mesmo sabendo que eram seus toscos dedos que estavam acariciando sua própria cabeça, porém gostava de imaginar que fossem dedos suaves, delicados e elegantes, de uma ninfa apaixonada. Francesa, de preferência, elas parecem ser mais apaixonadas do que as outras.
Cansou-se rápido de si mesmo e levantou-se em busca de algo a mais. Abriu a gaveta ranheta com cheiro de bureta usada (eu disse “bureta”, ele é um químico), e encontrou a sua calculadora. Começou a somar, somar, somar sem parar, números e mais números sem nenhum resultado satisfatório encontrar. Precisava de mais!
Tentou falar com flores que só lhe faziam espirrar, com formigas que não lhe deram atenção, a não ser quando morderam seu pé, e arriscou um desabafo com seus velhos chinelos. Lá embaixo o pão era vendido, as putas e os travestis voltavam pra casa com a maquiagem borrada e o ônibus cheio já roncava seus motores pelas esguias ruas do centro.
No resquício de sua unha, o todo amarelo. Na ponta de sua língua uma afta. No canto de seu coração, um amor inteiro não resolvido. Seu pulmão, calmamente trabalhando a sua sobrevivência, não se entendia com sua mente bloqueada, resultando em uma gigantesca falta de ar a cada forte e potente espirada.
Na máquina de escrever, nenhuma folha. Um quadro em branco decorava o teto, de onde goteiras invisíveis pingavam letras solitárias. Pegou, então, o violão, apalpou a cintura do instrumento, beijou-lhe as cordas e o deitou novamente. Um filme corria em sua mente, acelerado, e sem conseguir entende-lo, acendeu as luzes e saiu da sala.
Uma foto sua, delicadamente colocada em um bonito porta-retrato vermelho, de quando ainda eras uma alegre criança, lhe fez abrir álbuns antigos de sua família. Não reconhecia ninguém, nem a si mesmo. Achavas demasiado inocente e ignorante os seus olhos esbugalhados aos cinco anos de idade, terrivelmente curioso e tarado o seu rosto aos onze, ridiculamente apaixonados e vibrantes os seus gestos aos quinze, perturbadora e cínica demais sua pose aos vinte, careta e muito acomodado o seu terno aos trinta, decadente e misteriosa a foto aos quarenta, onde encolhe a barriga e esconde a falta de cabelo.
Com o álbum já fechado, abriu o zíper da calça. Totalmente nu, abriu a mão em espera de uma dança. Não houve nem quem lhe negasse a honra e, despedaçado, agarrou a vassoura e varreu freneticamente o seu lar. Ao passar ela em seus pés não sentiu cócegas e desesperou-se.
Ao sentir o mundo mover-se, deparou-se com o Sol sem as estrelas. Tentou fugir, tentou unir-se, tentou ter, pensou em ser, sentiu o todo diluído no ofuscar das sombras e viu-se em metamorfose. Quando já não sentias mais o próprio joelho que antes doía, ao esquecer-se da própria agonia, ao desistir da busca maior, foi ao encontro do mundo moderno e do futuro. Viu Picasso e Duchamp rirem, fechou a janela, e assim pôde enfim contemplar-se a si mesmo.
Olhou-se no espelho e viu-se transfigurado. Seu corpo todo distorcido, separado por cubos, quebradiço, separado, dividido irregularmente. Um pedaço do corpo em cada parágrafo da carta que acabara de escorregar por debaixo da porta.
No final da carta um aviso: “Onde morrem os medos, morrem também os desejos”. Com um pincel em mãos chorou lágrimas de tinta a óleo e pintou-se do jeito que sempre quis – com asas brancas. Abriu a janela e voou, para jamais voltar.