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terça-feira, 23 de março de 2010

Conto

*De Raul Machado

Maurício, Raquel e muito mais coisas


-Raquel, você vem?
-Hoje não Maurício.

Ele bate a porta do apartamento e desce as escadas em direção à rua. Acende uma cigarrilha sabor chocolate, sobe o zíper da jaqueta até o pescoço e começa a caminhar. Maurício é um cara baixinho, meio encorpado e com uma leve barriga proveniente de sua má alimentação. Ele namora Raquel a dois longos anos e mora com ela a três meses, coisa que o deixa um pouco aflito e com medo daquelas festas bregas de casamento. Ele só aceitou essa baboseira de morar junto por duas razões de sobrevivência: dividir o aluguel e transar todo dia. Com certeza estas não eram as razões de Raquel. Maurício tem medo de compromisso ao mesmo tempo em que tem medo da solidão, e toda vez em que ele se dá conta disto ele acende uma de suas cigarrilhas “achocolatadas”, pega uma jaqueta qualquer para se proteger do frio e sai para pegar um ar, dar uma caminhada. Na saída ele sempre pergunta para Raquel se ela quer ir junto, mas é apenas uma pergunta retórica, daquelas que o questionador não espera resposta alguma ou só aceita um tipo de resposta e não importa se o questionado responder qualquer outra coisa, pois quem perguntou não vai levar aquilo em conta. É como perguntar a uma pessoa que acabou de tropeçar e cair de cabeça no chão se a testa dela está doendo, ou se o mendigo quer um trocado. Raquel sabe disso, e mesmo quando está morrendo de vontade de pegar um ar lá fora, ela sempre nega o convite com um perturbador “hoje não”. Nem hoje, nem nunca, oras bolas! Raquel pensa que se ele se sente sufocado por causa dela, é óbvio que se grudar nele e querer discutir sobre isto só vai piorar as coisas.
Maurício está em mais uma destas suas crises e caminha na escuridão da fria cidade. Para se acalmar ele tenta centrar sua atenção em pequenos joguinhos mentais que ele adora, ou então procura observar os lugares por onde está passando. Nesta noite ele começou com os joguinhos, encarando cada pessoa que passava por ele, as vezes fazendo caretas, outras vezes fazendo feições de medo ou alegria, para depois rir das reações assustadas das pessoas. Depois imaginou ser um estrangeiro e ficou fingindo falar com alguém no celular com um inglês muito fajuto. Aí parou um pouco, e começou a contar quantas janelas estavam acesas nos prédios que ele ia passando, já eram onze da noite e poucos ainda estavam acordados, ou pelo menos com as luzes acesas, pois lhe veio à mente que luz acesa não significa que o cara esteja acordado, pois a pessoa pode ter caído no sono e ter se esquecido de apagar as luzes ou então saiu de casa e deixou-as acesas como forma de proteção, ao mesmo tempo em que luzes apagadas não significam pessoas dormindo, e aí a probabilidade de coisas que elas podem estar fazendo é ainda maior.
Maurício, já mais calmo, fazia agora o caminho de volta para casa, desta vez pelo outro lado da calçada. Ele queria ver aquele percurso de outro ponto de vista, até porque já estava se chateando consigo mesmo e precisava novamente de companhia ou então outras distrações. Boa jogada a dele, pois na volta ele acabou passando por uma velha senhora e também por um bêbado.
A velha estava sentada na calçada, descabelada e com as roupas rasgadas. Na sua mão direita ela segurava uma caneca. Maurício parou em frente a ela, remexeu os bolsos e não encontrou nada.
-Desculpe minha senhora, não tenho dinheiro, mas posso lhe oferecer um dedinho de prosa.
-Argg, urggg. Vai-te á merda!
-Boa noite pra você também.

Continuou caminhando e logo esbarrou com o bêbado.

-Óia... Moço....o senhor tem horas?
-Não, mas devem ser onze e meia.
-Vix, to atrasado. O senhor tem carro, moço?
-Não, por quê?
-O moço não ouviu falar que to atrasado não?
-Atrasado pra que, posso saber?
-Pra um encontro com uma bela mulher...
-Sério?
-Eu que bebo e o moço é que fica bobo? To atrasado pra chegar em casa, minha mulher já deve ta puta comigo! A patroa é ciumenta e odeia quando bebo... To fodido, e atrasado. O senhor não tem como me levar pra casa não?
-Não, me desculpe. Por falar nisso, eu também estou atrasado para chegar em casa, minha mulher deve estar preocupada.
-Boa sorte!
-Para você também!

E o bêbado saiu cambaleando, quase tropeçando na velha sentada na calçada mais à frente. Mauricio voltou para o apartamento. Raquel ainda estava sentada no mesmo sofá, vestindo a mesma calcinha preta e o mesmo top branco sem sutiã, vendo televisão. Raquel adora ficar vendo televisão durante a madrugada até pegar no sono e acordar de manhã cedo com a T.V ainda ligada e passando aqueles desenhos infantis. Normalmente os seus sonhos têm alguma relação com o filme que fica passando de madrugada ou qualquer outra coisa que passe na tela, por isso é uma verdadeira arte escolher o canal que a fará dormir e que a acordará no dia seguinte. Desta escolha dependerá o humor dela e de como será o seu dia. Raquel também adora sapatos vermelhos, pintar a unha de preto, fazer sexo de tarde, criar filmes e programas televisivos imaginários, comer pizza gelada de ontem e imaginar o que se passa na cabeça de Maurício.
No exato momento em que Maurício entrou no apartamento, sem falar nada e cheirando à chocolate esfumaçado (ou fumaça de chocolate, né!?), Raquel estava escolhendo um canal para lhe acompanhar durante a noite ao mesmo tempo em que tocava de leve seu clitóris e imaginava Maurício transando com sua melhor amiga. Na hora ela para tudo, olha um pouco assustada para trás, lhe dá boa noite e continua sua busca televisiva. Maurício retribui o cumprimento, abre uma cerveja e diz que vai dormir, seguindo para o quarto.
Quatro horas da madrugada, Raquel acorda com o barulho de uma gritaria. É um filme de terror, escolha errada desta vez. Antes de começar novamente o ardiloso trabalho de escolher um canal, ela resolve passar no quarto para dar um beijo em Maurício.
A luz do quarto está acesa, e ela resolve tirar o seu top branco. No caso dele estar acordado, poderiam transar, pensou. Mas Maurício não estava lá, e um recado em cima da cama avisava:

“Nem sempre luzes acesas significam pessoas acordadas, e vice-versa”

Raquel não entendeu o que aquilo significava, mas logo encontrou outro bilhete, na cabeceira da cama que trazia escrito mais um recado:

“Raquel, você vem?”

-Hoje não, Maurício... Hoje não.

Disse Raquel, enxugando as lágrimas e sorrindo.

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