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segunda-feira, 12 de abril de 2010

Conto e Poesias

*De Raul Machado

Reto não se anda


-Oi
-O que?

Seis da manhã. Um puta vento gelado corta a face e pessoas encasacadas andam ligeiras nas calçadas.

-Tem pão quente?
-Tem não.

O cabelo está desarrumado, o rosto está rachado, a camiseta está torta debaixo da jaqueta. O mau-humor é latente. A luva dificulta o ato de segurar a xícara de café.

Se eu pudesse, ouviria o que tu falas. Mas só penso em quão mal-humorado estou. Só penso nas minhas canelas desprotegidas. E não há companhia que me salve.

Tu até pensas em sorrir, em encaixar aquela perfeita piada entre meu croissant de queijo e presunto. Ele está frio. Eu estou frio. Você não está. Isso me irrita.

-Oi
-Olá.

Já são três da tarde. Estás mais simpático. Mas não mais seguro de si. Não há mercado que me sirva. Nem Estado. Ainda mais no estado em que estou. Se fosse livre choraria. Queria você aqui agora. Você trabalha. Longe.Livre é o livro que me livra disso.

O violino arranha meu ouvido. Queria você arranhando minhas costas.

-Oi
-Não tem pão quente.

Não era isso que queria pedir. Já são seis da tarde. E meu café?

-Não tem.
-Tem algo?
-Tem não.

Hoje a cidade está vazia. Seria feriado? Não, pois você trabalha. Eles também. Eu não, talvez por isso não haja nada.

-Acordado?
-Sempre!

O uísque me deixa leve, mas não morto. São nove horas da noite. A placa diz que há vagas na melancolia. To cheio. Disso e de outras. Melhor andar.

-Está tarde!
-Me deixa!
As pantufas aquecem os pés, mas ainda causam distúrbios quando saio com elas na rua. Nem repararam no meu bigode. E você, ainda repara em mim? E o pão? E meu pau?

-Boa noite.
-Vou tomar água.

A madeira faz barulho quando piso nela. Você finge não acordar. Eu finjo estar com sede. Teria pão gelado na geladeira?

-Tem não.
-Quem és tu?

Não tem pão gelado. Há torradeiras. Faltam as minhas torradas. Mas por que não esqueço isso?

-Tu me amas.
-Não tu. Amo as outras.

Quero saber correr. Não queria me olhar no espelho agora. Não agora. Correr é melhor. Minhas meias estão limpas. Meu pé não. Você vem comigo?

-ahn.

Já é meia-noite. Dizem que a lua aparece. Só vejo a noite.

-Bum. Acorda. Oi. Buzina.
-Não quero não.

O cheiro está aqui. Agora não quero mais. Apago eu, e ontem. Silêncio na igreja! Grita o padre. Ele e um menino. Coisa feia. Sangue no vitral. Mataram ele. Bem feito.

-Foi você?
-Foi não.
-Tem pão?
-Quem pergunta isso sou eu.
-Então és. Tu?
-Oras. Espero que sim.
-Estás preso.

Não quero não. Lá fora está frio, mas não há paredes para se encostar sem camisa. Não fiz nada, juro eu. Quero ir. Não brinco mais.

-Até mais.
-Bom dia. Já vou lá.

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Tropicalismo Antropofágico


Não sou rio
Para ter uma só nascente

E se fecho os olhos
E vejo outro lugar

Lá estou eu
Como nuvens na água

Como flores
Na virilha da menina

Que nadam
Que colorem
Que comem

O cheio

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Urbano da Silva


Entre muros
De luminosa escuridão
Murros
E corpos tremem no chão

Asfalto
Na falta
De algo Alto
Não há quem te passe talco

Olhos que não se olham
Mãos que se apóiam
Em poças que molham
Em postes que oram

Fragmentado Homem
Perdido em propagandas
Em fantasmas que andam
E bonecos que propõem

E no azul cintilante
Da televisão
No vermelho enxofre
Do maquinário pedindo perdão

Brota no cinza
A nova irmandade

Que a Terra minta
Mas é a cidade

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