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quarta-feira, 14 de julho de 2010

A Fábula da Carta

*Ilustração de Fernando Bijos e texto de Raul Machado

Era noite e fazia frio. O vento fazia ranger a pequena casa de madeira solitária no meio da floresta. O ano era 1485, em alguma região desconhecida do mapa. O povoado mais próximo da casa ficava a 8 quilômetros, e o único meio de se chegar lá era caminhando ou no lombo de um cavalo.
Na pequena casa perdida morava um misterioso homem, com sua misteriosa mulher, e mais alguns ratos. Um pequeno lampião iluminava a mesa de madeira no centro da sala, onde repousavam as garrafas de vinho e os queijos produzidos pelos dois, quando naquela sombria noite os tambores das patas dos cavaleiros da morte se fizeram ouvir por toda a região.
O pobre homem não viu quando os cavaleiros invadiram sua casa, estilhaçando janelas e zumbindo como demônios, tomaram seu vinho, comeram seu queijo e de facas em punho marcaram os olhos de sua mulher com um X, o sinal da doença. Tão ligeiros como eles chegaram, eles se foram, sumindo na escuridão.
Ajoelhando perante o Livro da Magia, o homem chorou e rezou por sua mulher. De nada adiantou. Em uma semana ela estava cega, na segunda semana já estava paranóica e a loucura cada vez mais lhe comia o cérebro. Na terceira semana morreu ao enfiar uma pena, embriagada no nanquim, em seu peito. Na sua boca a carta de despedida amassada entre os lábios agora gelados. O homem leu, e sabia o que tinha de ser feito.
Na manhã seguinte ele caminhou sozinho até o povoado. Carregava nos braços o Livro da Magia, a carta de sua mulher morta, uma pena, um vidro de nanquim e um baralho de cartas. Foi ao encontro de Madame Cabeça-de-Lua, especialista em química e jurada de morte pelo Reinado por prática de bruxaria, que ninguém jamais vira a face, sempre coberta por uma máscara de madeira. Dizem que é impossível retirar a sua máscara e o único que conseguiu tal façanha viu seu próprio corpo transformar-se inteiro em pedra e ser lançado aos céus para lá viver eternamente sozinho: a Lua.
O homem conseguiu encontrar a Madame em uma pequena caverna próxima ao mercado. Contou-lhe sua história e recebeu a simpatia dela. Ela haveria de criar um baralho de cartas inteiramente novo, com a pena e o nanquim usados pela mulher do homem, personificando a morta na Rainha, e o homem no Rei. Esta era a única maneira dele fugir dos cavaleiros da morte e reencontrar a sua amada. Mas para isto, o homem teria que renunciar à sua própria vida. E assim o fez, com a mesma pena e o mesmo nanquim que sua mulher.
As lendas contam que o baralho ficou pronto no verão de 1490. O homem e a mulher, Rei e Rainha, estavam juntos novamente. Madame Cabeça-de-Lua deu-lhe os nomes: Nanqueen e Nanking. O baralho nunca foi usado e nem visto, até a morte de Madame, queimada viva em sua caverna.
Dizem que o fogo queimou tudo que havia ali dentro, menos duas coisas: duas cartas. Nanking, encontrada e capturada, e Nanqueen, vista voando entre as cinzas e a fumaça, como em um vôo cego, sem jamais ter sido encontrada novamente. O padre, fascinado com o fato de Nanking ter resistido, a guardou em um cofre no subterrâneo da igreja. Ele temia que a carta estivesse possuída por poderes diabólicos, mas cogitou que ela escondesse também algum segredo de vida eterna, por ter resistido.
Durante uma madrugada o padre estava dormindo em seu pequeno quarto na igreja, quando gritos desesperados lhe invadiram os ouvidos. Assustado, levantou-se e correu para o salão principal. Os gemidos, viscerais e agudos, lhe arrepiaram a espinha. Não havia mais ninguém com ele ali, e os gritos não paravam. Cada vez mais altos, mais profundos, os gritos tornaram-se sons guturais, e mais pareciam o vomitar de um espírito de profundezas obscuras jamais vistas. O padre, em posição fetal frente à cruz de Jesus, chorava e pedia clemência. As suas calçolas já estavam borradas de medo.
Em meio aos vômitos infernais e ao seu próprio choro angustiado, o padre conseguiu ouvir o que mais temia: O grito clamava por Nanqueen. Era a carta, era Nanking, que pedia por sua amada. Neste momento, um rato entrou na igreja por uma fresta, e correu até os subterrâneos. O padre, desesperado, correu atrás. Lá embaixo, encontrou o seu cofre arrebentado sem a Nanking no seu interior. Os gritos pararam. O rato foge rapidamente. O padre, estarrecido, ficou parado sem saber o que fazer.
Sabe-se, hoje em dia, que este padre foi dado como louco na época e acusado de inventar toda esta história da Nanking. Em 1494 ele foi queimado vivo, acusado de demonismo. Acusação que ele negou veementemente até a última brasa queimar-lhe as entranhas.
Após este caso, Nanking não foi vista por séculos. Somente em 1912, há indícios que a carta tenha sido vista em regiões marginais de grandes cidades da Europa e da América. Há relatos dessa época da existência de uma carta que não consegue ser rasgada, amassada ou queimada, que ao ser guardada e escondida começava a gritar e assombrar a região, sempre chamando pela Nanqueen. Normalmente estes casos aconteceram juntamente com uma infestação de ratos na cidade, nunca claramente explicados pelas autoridades.
Em 1968 finalmente uma luz aparece neste misterioso caso. Em meio às revoltas em Paris, Nanking foi encontrada com um grupo organizado de militantes. Ao saber da existência desta carta, o governo tentou de todo jeito capturá-la, sem sucesso. Em 1970 ela é novamente encontrada, agora na Índia, nas mãos de um sábio. Ele contou que a carta era livre por natureza e jamais poderia ser dominada ou privada de sua missão: reencontrar Nanqueen. Contou também que lhe foi confiado uma informação, de que Nanking viu sua amada voando para as nuvens naquele dia em que o fogo tomou a caverna de Madame Cabeça-de-Lua. Por isso, necessitava da ajuda de sonhadores, loucos e livres, para que conseguisse chegar à altura de sua amada. Na época muitos desconfiaram do sábio hindu, duvidando que a carta tivesse lhe contado tudo aquilo.
Porém em 2009, Nanking é encontrada com Artério Arteiro, em suas nuvens coloridas. A busca continua, cada vez mais próxima, pela liberdade e pelo amor, nem que seja cego, nem que seja nuvem, nem que sejam ratos da noite.

“Diante deste espelho, já não suporto mais o meu reflexo. Só vejo solidão. Só vejo prisão. A minha necessária liberdade, o meu necessário amor, talvez só surja novamente através de riscos escuros e profundos de nanquim. Os mesmos riscos que um dia me aprisionaram” (Nanking).

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