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quinta-feira, 1 de julho de 2010

O Vôo

*Conto de Raul Machado


Cinco e quinze da madrugada. O cheiro do dia parindo já começava a invadir seu pequeno apartamento. Janela aberta para que seu cubículo pareça maior, como se o mundo inteiro pudesse entrar por aquele buraco na parede, fazendo seu apartamento se transformar em apenas um pequeno sofá acolchoado no canto da sala do universo.
Resquícios de vinho tinto manchavam o bege das lajotas do piso. Vinho barato, reconhecível pela coloração, odor e dor de cabeça. Sinos tocavam em sua cabeça e despertadores assobiavam no seu ouvido, mesmo sem missa na igreja e sem pilha no relógio. Relógio que arduamente se segurava, torto, acima da entrada da cozinha.
Foi até seu quarto, estava vazio. Correu para o banheiro, também vazio, espiou atrás da geladeira e não viu ninguém, tentou ver dentro do armário, mas não viu nada, e até embaixo da escrivaninha foi procurar, porém não encontrou. Ficou com medo de olhar por debaixo das roupas que vestia. Medo de estar vazio também.
Fez dois copos de café e sentou-se sozinho na escrivaninha. Bebeu de um, o outro ofereceu a ninguém, aparentemente sentado do seu lado. Delirou fingindo conversar com Ninguém, debatendo sobre o mercado brasileiro de nozes ou falando animosidades sobre a vida sexual do cachorro do porteiro.
Os dois copos esvaziaram-se e começou a fazer cafuné em si mesmo. Excitava-lhe a sensação, mesmo sabendo que eram seus toscos dedos que estavam acariciando sua própria cabeça, porém gostava de imaginar que fossem dedos suaves, delicados e elegantes, de uma ninfa apaixonada. Francesa, de preferência, elas parecem ser mais apaixonadas do que as outras.
Cansou-se rápido de si mesmo e levantou-se em busca de algo a mais. Abriu a gaveta ranheta com cheiro de bureta usada (eu disse “bureta”, ele é um químico), e encontrou a sua calculadora. Começou a somar, somar, somar sem parar, números e mais números sem nenhum resultado satisfatório encontrar. Precisava de mais!
Tentou falar com flores que só lhe faziam espirrar, com formigas que não lhe deram atenção, a não ser quando morderam seu pé, e arriscou um desabafo com seus velhos chinelos. Lá embaixo o pão era vendido, as putas e os travestis voltavam pra casa com a maquiagem borrada e o ônibus cheio já roncava seus motores pelas esguias ruas do centro.
No resquício de sua unha, o todo amarelo. Na ponta de sua língua uma afta. No canto de seu coração, um amor inteiro não resolvido. Seu pulmão, calmamente trabalhando a sua sobrevivência, não se entendia com sua mente bloqueada, resultando em uma gigantesca falta de ar a cada forte e potente espirada.
Na máquina de escrever, nenhuma folha. Um quadro em branco decorava o teto, de onde goteiras invisíveis pingavam letras solitárias. Pegou, então, o violão, apalpou a cintura do instrumento, beijou-lhe as cordas e o deitou novamente. Um filme corria em sua mente, acelerado, e sem conseguir entende-lo, acendeu as luzes e saiu da sala.
Uma foto sua, delicadamente colocada em um bonito porta-retrato vermelho, de quando ainda eras uma alegre criança, lhe fez abrir álbuns antigos de sua família. Não reconhecia ninguém, nem a si mesmo. Achavas demasiado inocente e ignorante os seus olhos esbugalhados aos cinco anos de idade, terrivelmente curioso e tarado o seu rosto aos onze, ridiculamente apaixonados e vibrantes os seus gestos aos quinze, perturbadora e cínica demais sua pose aos vinte, careta e muito acomodado o seu terno aos trinta, decadente e misteriosa a foto aos quarenta, onde encolhe a barriga e esconde a falta de cabelo.
Com o álbum já fechado, abriu o zíper da calça. Totalmente nu, abriu a mão em espera de uma dança. Não houve nem quem lhe negasse a honra e, despedaçado, agarrou a vassoura e varreu freneticamente o seu lar. Ao passar ela em seus pés não sentiu cócegas e desesperou-se.
Ao sentir o mundo mover-se, deparou-se com o Sol sem as estrelas. Tentou fugir, tentou unir-se, tentou ter, pensou em ser, sentiu o todo diluído no ofuscar das sombras e viu-se em metamorfose. Quando já não sentias mais o próprio joelho que antes doía, ao esquecer-se da própria agonia, ao desistir da busca maior, foi ao encontro do mundo moderno e do futuro. Viu Picasso e Duchamp rirem, fechou a janela, e assim pôde enfim contemplar-se a si mesmo.
Olhou-se no espelho e viu-se transfigurado. Seu corpo todo distorcido, separado por cubos, quebradiço, separado, dividido irregularmente. Um pedaço do corpo em cada parágrafo da carta que acabara de escorregar por debaixo da porta.
No final da carta um aviso: “Onde morrem os medos, morrem também os desejos”. Com um pincel em mãos chorou lágrimas de tinta a óleo e pintou-se do jeito que sempre quis – com asas brancas. Abriu a janela e voou, para jamais voltar.

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